A enorme rede de células nervosas que reside no intestino dos vertebrados faz com que ela tenha merecido, nos últimos anos, a alcunha de segundo cérebro. E, a julgar pelos resultados hoje publicados, (13 de Julho) na revista científica Nature, pela equipa liderada pelo investigador Henrique Veiga-Fernandes, essa alcunha parece mesmo ser merecida.
Veiga-Fernandes e a sua equipa, do Instituto de Medicina Molecular, em Lisboa, descobriram, no intestino do ratinho, um processo inédito que protege os tecidos intestinais contra a inflamação e as agressões microbianas -- e que as combate quando elas surgem. E o mais surpreendente é que esse mecanismo funciona sob o controlo do sistema nervoso intestinal. "O nosso estudo revela que o sistema nervoso funciona como os 'olhos e ouvidos' do sistema imunitário, diz Veiga-Fernandes, que está actualmente em fase de transição para o Centro Champalimaud. "As células do sistema nervoso recebem sinais do intestino e dão instruções específicas ao sistema imunitário para reparar os danos." Já se sabia que existe uma relação, um diálogo, entre os neurónios do intestino e o sistema imunitário. Aliás, um estudo publicado por cientistas da Universidade de Rockefeller (EUA) mostrou, muito recentemente, que certos neurónios conseguem induzir certas células imunitárias (os macrófagos) a produzir substâncias protectoras do intestino. Mas a equipa de Veiga-Fernandes foi mais longe: "O que é completamente novo", diz este investigador, "é que não só desvendámos o fenómeno em si, mas também descrevemos os mecanismos moleculares que estão em jogo". Tudo começou quando a sua equipa identificou uma proteína, chamada Ret, à superfície de um tipo de linfócitos (glóbulos brancos) ditos inatos, que são dos mais importantes reguladores da inflamação e da infecção ao nível das mucosas. A proteína Ret funciona, no fundo, como um interruptor (pode ser ligada ou desligada pelos sinais que recebe).Linfócitos mascarados de neurónios
Ora, já se sabia que essa mesma proteína Ret existe à superfície das células nervosas do intestino, onde serve para regular a função destas células ao captar, tal e qual uma antena, sinais químicos vindos do exterior (moléculas chamadas factores neurotróficos). "De repente, estávamos perante um tipo de linfócitos 'mascarados de neurónios', diz Veiga-Fernandes. "Foi uma grande surpresa. Mas o que é que a proteína Ret estava a fazer nos linfócitos?"
Para tentar desvendar o mistério, os cientistas começaram por localizar, no intestino de ratinhos, os linfócitos inatos que possuíam o receptor Ret. Os animais tinham sido geneticamente manipulados de forma a que todas as células que expressassem a proteína Ret ficassem de cor verde fluorescente. Foi assim que descobriram que efectivamente, mesmo por baixo da mucosa intestinal, existem milhares de agregados de células, cada um composto por cem a duzentos linfócitos inatos que expressam a proteína Ret.
O passo seguinte consistiu em determinar qual seria a função da proteína Ret nesses linfócitos. "Verificámos então que a proteína Ret controla a produção pelos linfócitos inatos do intestino de uma molécula, a Interleucina-22 (IL-22), que é extraordinariamente importante para reparar o epitélio [a parede] intestinal", diz Veiga-Fernandes.
E de facto confirmaram, em ratinhos transgénicos sem proteína Ret nos linfócitos inatos, que o epitélio intestinal estava alterado e tinha menos capacidade de se regenerar e de expressar os genes que promovem a reparação.Daí surgiu outra ideia: provar que estes animais, por terem o epitélio alterado, eram susceptíveis a diversas patologias inflamatórias e infecções intestinais. "Testámos esta ideia em animais infectados com bactérias intestinais e em animais onde tinha sido induzida uma inflamação intestinal crónica", diz Veiga-Fernandes. "Consequência: os animais sem Ret tinham uma enorme susceptibilidade a ambas as coisas. Morriam rapidamente."
Pelo contrário, ratinhos transgénicos com uma expressão de Ret aumentada revelaram-se "totalmente resistentes" a estas patologias.Uma outra pergunta impunha-se: como é que a Ret dos linfócitos é activada? Por outras palavras, que células estarão a enviar os sinais neuroreguladores necessários para os receptores Ret dos linfócitos inatos, induzindo assim estas celulas imunitárias a produzir IL-22, molécula-chave da reparação intestinal? Para responder à pergunta, os cientistas foram espreitar, por microscopia de alta resolução, quais eram as células situadas perto dos linfócitos inatos que podiam estar a "ligar o interruptor".
Troica multi-celular
"Descobrimos então que todos os agregados de linfócitos inatos se encontravam à grande proximidade de um tipo de célula do sistema nervoso, chamadas células da glia", explica Veiga-Fernandes. "São elas que produzem os factores neurotróficos que vão ligar a Ret dos linfócitos inatos." As células da glia não são neurónios, mas são um elemento crucial do sistema nervoso.
Pergunta seguinte: como é que as células da glia "sabem" detectar as ameaças contra o intestino, de forma a activar a Ret dos linfócitos inatos na altura certa?
"Na realidade, o que está a fazer com que as células da glia produzam esses activadores da Ret é que elas conseguem detectar sinais da presença de micróbios e da destruição do tecido intestinal", responde Veiga-Fernandes. "Podem ser sinais produzidos pelas bactérias ou 'alarminas', que são sinais emitidos por qualquer célula em apuros."
"Resumindo, identificámos uma 'troica' multi-celular [linfócitos inatos, células da glia, células do epitélio intestinal], orquestrada por factores neurotróficos, que protege o intestino", diz o investigador. "E constatámos que a alteração deste eixo celular e molecular conduz à doença inflamatória intestinal e à incapacidade de eliminar as infeções."
Uma aplicação futura dos resultados poderá ser o desenvolvimento de novas estratégias preventivas e terapêuticas contra a inflamação intestinal crónica -- tais como doença de Crohn ou colite ulcerosa -- e até contra o cancro intestinal. Actualmente, tenta-se controlar a inflamação crónica do intestino com medicamentos supressores da imunidade. Mas a activação das células da glia poderá permitir reparar mais eficazmente o tecido intestinal, segundo Veiga-Fernandes.
Os cientistas estão agora a explorar formas de activar directamente os linfócitos inatos, sem passar pela glia. "Queremos conseguir fazer o trabalho das células gliais", diz Veiga-Fernandes.
Henrique Veiga-Fernandes licenciou-se em medicina veterinária pela Universidade de Lisboa. Doutorou-se em biologia molecular e celular pela Université René Descartes, em Paris. Desenvolveu os seus estudos de pós-doutoramento no Institut Necker, em Paris, e no National Institute for Medical Research em Londres.
Criou o seu próprio laboratório em 2009 no Instituto de Medicina Molecular em Lisboa e, em 2014, integrou a direcção deste instituto. Mais recentemente, o seu laboratório juntou-se ao novo programa de investigação Biologia dos Sistemas e das Metástases do Centro Champalimaud, em Lisboa.
Fez descobertas pioneiras, que contribuíram para a compreensão da memoria imunitária e da biologia celular dos linfócitos inatos e das células estaminais hematopoiéticas. Entre outras distinções, recebeu três prémios do European Research Council (ERC); foi eleito membro do EMBO; e é Comendador da Ordem Militar de SantIago da Espada.
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Media:
Maria João Soares
mjsoares@jlma.pt
351914237487
Journal
Nature