Um estudo conduzido no Instituto de Física da Universidade de São Paulo (IFUSP), no Brasil, resolveu uma controvérsia que há muito se arrastava na comunidade internacional de pesquisadores dedicada à investigação de defeitos em folhas de grafeno. A controvérsia dizia respeito ao cálculo da estrutura eletrônica geral do defeito. Essa configuração, que comporta muitas variáveis, era descrita de diferentes maneiras, conforme o pesquisador e o modelo adotado. A solução, igual para todos os modelos e compatível com os dados experimentais, foi obtida pela chilena Ana María Valencia García e sua orientadora de doutorado, Marília Junqueira Caldas, professora titular do IFUSP.
Artigo assinado pelas duas pesquisadoras foi publicado na revista Physical Review B. E os editores da revista escolheram uma das figuras do artigo para integrar a seção Kaleidoscope, que contempla o aspecto estético das imagens publicadas.
Ana María Valencia García recebeu bolsa de doutorado da agência chilena CONICYT (Comisión Nacional de Investigación Científica y Tecnológica), enquanto Marília Junqueira Caldas contou com apoio do INEO (Instituto Nacional de Eletrônica Orgânica), financiado conjuntamente pela FAPESP e pelo CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico).
"Havia divergência na comunidade sobre se a vacância - isto é, a ausência de um átomo de carbono da rede cristalina - provocava um momento magnético fraco ou forte. E sobre quão forte seria a interação magnética entre vacâncias", disse Marília Junqueira Caldas. A vacância impele os átomos ao redor a se rearranjar e estabelecerem novas ligações para compensar o átomo faltante. E formam-se no local configurações de elétrons chamadas de "orbitais flutuantes".
Há três variáveis importantes associadas ao fenômeno: a densidade eletrônica, isto é, como os elétrons se distribuem; os níveis eletrônicos, isto é, os patamares de energia ocupados pelos elétrons; e o momento magnético, isto é, o torque produzido nos elétrons por um campo magnético externo.
Uso inédito do método híbrido em grafeno
Falando sobre a divergência, Caldas estranha o fato de seus protagonistas serem todos eles excelentes pesquisadores, de renomados institutos internacionais. Os estudos de sua pesquisa revelaram que os valores divergentes decorriam de diferentes métodos de simulação utilizados.
"Há duas maneiras de calcular a estrutura eletrônica geral da região da vacância, ambas derivadas da mecânica quântica: o método de Hartree-Fock (HF) e a teoria do funcional da densidade (Density Functional Theory - DFT). Na DFT, o cálculo é obtido fazendo-se cada elétron interagir com a densidade eletrônica média, que inclui ele mesmo. No HF, o operador utilizado exclui o próprio elétron e considera somente sua interação com os demais. O HF proporciona resultados para a estrutura dos elétrons com maior precisão, porém o cálculo é muito mais trabalhoso", disse Caldas.
"Muitas vezes, os dois métodos são combinados, por meio de funcionais híbridos. Os funcionais híbridos são mencionados pela literatura especializada desde o final do século passado. Eu mesma já havia trabalhado com eles tempos atrás em um estudo sobre polímeros. Porém, nunca haviam sido utilizados no caso do grafeno. O que Ana María e eu fizemos foi descobrir o funcional híbrido que melhor descreve o material em pauta. Aplicado aos diversos modelos, por meio de simulação computacional, nosso funcional híbrido produziu, para todos eles, o mesmo resultado, que bateu com os dados experimentais", prosseguiu.
Além de ter possibilitado a solução de controvérsia que perdurava há anos, e de ter uma de suas imagens selecionada pelo valor estético, outra peculiaridade interessante desta pesquisa foi o problema que a motivou. "Chegamos ao tema a partir do interesse suscitado por um material chamado 'terra preta do índio'. Esse material, denominado anthropogenic dark earth (ADE) em inglês, é uma terra escura e muito fértil existente na Amazônia. Ela retém a humidade mesmo em altas temperaturas, e permanece fértil mesmo sob chuvas intensas. Trata-se de um material de origem antropogênica, composto por retalhos de terrenos cultivados pelos primitivos habitantes da Amazônia há pelo menos dois milênios. Sabia-se que esse material, tão interessante, resultava de empilhamentos de nanoflocos de grafeno. E foi o interesse pela 'terra preta do índio' que nos levou ao estudo do fenômeno da vacância em folhas de grafeno", descreveu Caldas.
Para encerrar, é preciso dizer que a vacância em folhas de grafeno oferece um horizonte de aplicação tecnológica, pois é no defeito e não na estrutura íntegra que a informação pode ser codificada. Para alcançar esse horizonte, no entanto, muita pesquisa terá ainda que ser realizada.
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Physical Review B